quinta-feira, 20 de maio de 2010

"um santuário dedicado a qualquer divindade que o tempo levou"

Um interessante artigo de 1905, publicado n' O Archeologo Português, que nos fala de um templo já desaparecido, em Trás-os-Montes, e que o autor comparou ao santuário de Panoias.

Link para artigo completo.

Santuário de Panóias

O Satuário rupestre de Panóias localiza-se numa zona montanhosa, junto à cidade de Vila Real, em Trás-os-Montes. O culto de Panóias a Serápis foi introduzido no final do século II ou começo do século III por Calpúrnio Rufino, funcionário do governo imperial. Geza Alföldy diz-nos que este culto foi criado «provavelmente num antigo recinto de um culto indígena».

Acerca deste monumento foram feitos vários estudos, sendo o texto que se segue retirado do estudo de Géza Alföldy, na década de 90, e parcialmente publicado no livro Religiões da Lusitânia, edição de 2002, do Museu Nacional de Arqueologia.

«A area sacra estende-se ao longo da inclinação meridional de uma colina. Os seus monumentos mais importantes são três grandes penedos, com cavidades abertas na sua superfície: o primeiro está situado muito perto da entrada do recinto; o segundo, mais acima; o terceiro, finalmente, coroa o topo da colina. As epígrafes conhecidas concentram-se na primeira rocha e nas suas imediações. Originalmente existiam mais inscrições. De facto, ainda hoje se vêem alguns campos epigráficos ou restos deles na segunda e terceira rocha; porém, nada nos ficou desses textos. O santuário era ainda composto por outros penedos com cavidades de forma diversa, cuja maioria conhecemos apenas por desenhos antigos de Aguiar e de Argote. As inscrições e as estruturas cujos vestígios se vêem nas rochas, formam um conjunto e explicam-se por mútua relação.»

"Aos deuses e deusas deste recinto sagrado. As vítimas, que se sacrificam, são mortas neste lugar. As víceras queimam-se nas cavidades quadradas, em frente. O sangue verte-se, aqui ao lado, sobre as cavidades pequenas. Estabeleceu (tudo isto) Gaius Calpurnius Rufinus, membro da ordem senatorial."

"G. Calpurnuis Rufinus consagrou dentro do templo (templo entendido como recinto sagrado), uma aedes (uma aedes, um «templo» no sentido de edifício), dedicado aos Deuses dos Infernos."

"Aos deuses e deusas e também a todas as divindades dos Lapiteae, Gaius Calpurnius Rufinus, membro da ordem senatorial, consagrou para sempre, juntamente com este recinto sagrado, uma cavidade, na qual se queimam as vítimas, segundo o rito."

"Aos deuses, G. C. Calpurnius Rufinus, claríssimo, com este (templo) oferece também uma cavidade para se proceder à mistura."
"Ao Altíssimo Serápis, com o Destino e os Mistérios, G. C. Calpurnius Rufinus, claríssimo."

Esta é a última inscrição, que indica o final do rito. «O Senador dedicou uma cavidade na qual, segundo o rito, se misturava um líquido. A dita cavidade - sem vestígios de fogo, em contraste com as anteriores - localizava-se directamente por detrás da epígrafe. Neste sítio, o mystes evidentemente purificava-se do sangue, da gordura e do negro-de-fumo com que se sujara.»

«Trata-se de um ritual de iniciação que apresenta uma ordem e um itinerário muito claro: a matança das vítimas; o sacrifício de sangue nas cavidades pequenas para as divindades dos infernos; a incineração das vísceras como oferendas aos deuses; o consumo da carne da vítima como acto principal da iniciação, combinado com a revelação do nome do senhor supremo dos infernos, o Altíssimo Serápis; e, por fim, a purificação. Tudo isto corresponde aos rituais praticados em cultos similares do mundo clássico.
Todavia, tratava-se apenas do início de um ritual. As actividades prosseguiam seguramente na aedes, em cujo pavimento se observavam cavidades quadradas. Pode supor-se que noutros pontos do recinto a iniciação se repetia, cada vez num grau mais elevado - como, por exemplo, nos mistérios de Mitra. Sobre o penedo do meio da area sacra, ergueu-se outra aedes, também com cavidades no seu interior; infelizmente, as respectivas inscrições foram completamente destruídas.
No cimo da grande rocha superior existiu também uma aedes. Na parte exterior dos seus alicerces encontram-se duas cavidades e, no seu interior, outras duas; uma terceira cavidade, iniciada no interior, conduzia por debaixo da parede setentrional do edíficio à margem meridional do rochedo, onde se abre um panorama maravilhoso. Estas cavidades são maiores que todas as outras; correspondem ao tamanho de uma sepultura. Obviamente aqui teve lugar o acto principal das iniciações, que se nos torna evidente, por exemplo, graças à novela O Burro de Ouro de Apuleio, do séc. II, bem conhecida: a saber, a morte ritual do mystes, o seu sepultamento e, por fim, a sua ressurreição, a fim de alcançar uma nova visão do mundo e de lhe conhecer a grandeza e formusura.»

«O caracter das divindades de Panóias corresponde à doutrina dos mistérios que nos transmite Apuleio: o poder divino apresenta-se sob diversos nomes, porém os adeptos sabem o seu verdadeiro nome. Reconhecem-no no decurso dos diferentes actos da iniciação, passo a passo. Isto observa-se, aliás, através dos próprios textos identificados. A primeira inscrição fala, de uma maneira geral, dos deuses e deusas deste recinto sagrado. A segunda explica que se trata das divindades dos infernos, cujo culto foi aqui introduzido por Gaius Calpurnius Rufinus. Através da terceira fica-se a saber que no recinto sagrado se honram também os numina dos Lapiteae, como divindades do lugar. A quarta, no ponto mais importante da iniciação mistérica, revela o nome do deus supremo: Hypsistos Serapis. Na quinta, por fim, o nome das divindades de Panóias aparece designado através da palavra Dii: neste ponto terminal do seu itinerário, o mystes já não necessitava de mais explicações sobre as divindades da area sacra.»