sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Fonte do Ídolo

Fonte do Ídolo, ou Quintal do Idro, é um importante santuário erigido na época romana, no início do século I, e que se encontra na parte oriental da cidade de Braga, nas proximidades de uma zona de necrópoles, acessível a partir da Rua do Raio. Este monumento conservou-se parcialmente, e é um dos locais da cidade romana mais divulgados devido ao seu cariz único.

O monumento consiste numa fonte de água com inscrições e figuras esculpidas num afloramento natural de granito. Trata-se de um grande bloco de granito, com cerca de três metros de comprimento por um metro e meio de altura. No entanto, esta fraga originalmente devia ser mais alta, uma vez que o texto gravado no lado esquerdo e a parte superior da escultura foram mutilados. Na parte esquerda do monumento, encontra-se uma grande estátua, num avançado estado de degradação, o que impossibilita averiguar se é feminina ou masculina. Do lado direito do monumento distingue-se uma edícula, com a representação de um busto no seu interior. Também fazem parte do monumento duas inscrições. Junto ao bloco, sob um nicho, irrompe também uma nascente que corre através de um canal aberto na rocha.

Este santuário tem tido diferentes interpretações. «A partir de 1894 José Leite de Vasconcelos deslocou-se à Fonte do Ídolo várias vezes, examinando com cuidado o santuário. Leite Vasconcelos deu origem a uma linha interpretativa que se manteve estável ao longo de quase um século, com algumas variações. De acordo com a sua interpretação, a divindade e o dedicante encontram-se ambos representados, a primeira no busto inserido na edícula, e o segundo na figura togada.
Esta leitura foi alterada por Alain Tranoy que inverteu os termos, identificando o deus com a figura do lado esquerdo, enquanto que o dedicante estaria representado na edícula, ou seja do lado direito.
Porém, António Rodríguez Colmenero defende que se trata de um santuário plural. Este autor considera que o dedicante não está representado, mas sim duas divindades. A estátua togada representa a deusa Nabia (uma Nabia/Fortuna), enquanto que Tongonabiagus, divindade da "veiga bracarense", está figurado na edícula. O investigador galego propõe também uma leitura para a epígrafe por cima do frontão: "Seomastoreico", uma terceira divindade que afirma estar relacionada com Tongonabiagus.» [Fonte:
Alves, Alexandrina Amorim, Fonte do Ídolo]

Com base no conhecimento dos vestígios encontrados na envolvente da Fonte do Ídolo, há investigadores que entendem que o monumento poderá ter sido parte integrante de uma domus suburbana, enquanto outros pensam que estamos perante um santuário público mandado edificar por Celico Fronto, para usufruto da comunidade bracarense.

Em qualquer caso, trata-se de um local de grande relevância patrimonial e científica, quer pela sua originalidade, quer também pela informação que faculta acerca das divindades indígenas veneradas nos primórdios da Callaecia meridional.

Em 6 de Junho de 1910 o sítio foi classificado como Monumento Nacional. Em 1970, foi emitido um Decreto-Lei que determina uma zona de protecção à volta da Fonte do Ídolo. Por iniciativa própria, a Direcção dos Monumentos do Norte deu início, em 2003, a um projecto de conservação e valorização, orientado pela arquitecta Paula Silva, que permite visitar o santuário em condições dignas e confortáveis.


Passemos, agora, à descrição pormenorizada da Fonte do Ídolo, de acordo com o estudo efectuado por Alain Tranoy.

«1 - Descrição

Do lado esquerdo, está representada uma grande estátua, de 1,10m de altura, em muito mau estado de conservação. Figura um personagem trajado com uma longa veste drapeada muito envolvente; esta apresenta, à direita, uma série de pesadas pregas que podem pertencer a um outro tipo de roupagem. A parte superior da estátua está fragmentada e a cabeça quase desapareceu por completo; o que subsiste não permite afirmar, com segurança, se se trata de um homem ou de uma mulher. As descrições feitas por Contador de Argote, no século XVIII, fazem supor que nessa época o monumento se encontrava em melhor estado, percebendo-se então os vestígios de um rosto barbado (Contador de Argote, 1732, p. 261-262). A estátua, se atendermos a esta antigas descrições, seria pois de um homem. Apesar das mutilações que afectaram a rocha, é ainda possível distingir um corno de abundância, cornucopia, que a personagem segura no seu braço esquerdo. À esquerda da estátua e na parte superior da rocha, forma gravadas quatro linhas que proporcionam o nome e a origem do autor do monumento:

[CEL] ICVS∙FRONTO / ARCOBRIGENSIS / AMBIMOGIDVS / FECIT
“Celicus Fronto, de Arcóbriga, Ambimógido, fez (este monumento)”

b) O lado direito da face esculpida organiza-se me torno de um nicho rectangular encimado por frontão, reproduzindo assim a fachada de um templo. Sob esta edícula correm as águas brotantes. O interior do nicho contém o busto de um jovem, ligeiramente descentrado à direita para deixar espaço a uma inscrição, a qual se prolonga por baixo do próprio nicho e recorda o nome do autor do monumento:

(no nicho) CELICVS FECIT

(por baixo) FRO[NTO]

O frontão apresenta decoração e relevo: uma pomba virada para a direita, face a um objecto que aparenta ser um maço.

À esquerda do nicho destaca-se, em duas linhas, um nome indígena (letras de 6 a 8 cm):

TONGOE/NABIAGOI

A leitura da segunda linha colocou alguns problemas, uma vez que o último I foi gravado sobre o traço que delimita o contorno do nicho (Pereira Menaut, 1985). Vários autores puseram em dúvida a autenticidade desta letra, que poderia ter sido gravada num segundo momento. Houve também alguns investigadores que consideraram como da mesma época os caracteres gravados na parte de cima , isto é, à esquerda e sobre o nicho (Rodríguez Colmenero, 1995, p. 198-205). Este texto, de difícil interpretação e de gravação totalmente diferente, não pertence ao monumento original e não é integrável na dedicatória. A ideia prevalecente é que se trataria do nome do deus. Na realidade, estamos perante um monumento cuidadosamente elaborado, cuja composição foi pensada com um evidente atenção no que respeita à disposição das esculturas e das inscrições. Aquele trecho gravado em cima, encontra-se em total desarmonia com o conjunto. Em contrapartida, torna-se difícil decidir sobre o I final do nome indígena; mas ele não causa obstáculo à compreensão da epígrafe, como se verá.

Em resumo temos:

• o nome do dedicante, simultaneamente o executor do monumento, com a respectiva origo;

• a estátua da divindade;

• o nome desta divindade no dativo, em –o, ou em –oi – o que seria uma forma indígena;

• o retrato do dedicante e a repetição do seu nome no nicho.


2 – Comentário

Para tentar compreender a natureza deste monumento é necessário tomar em linha de conta a documentação que se lhe pode reportar: o monumento em si mesmo e o respectivo contexto aquático com a nascente, o local da sua implantação, a existência de outras inscrições encontradas na mesma zona. De facto, três epígrafes provêm desta área: uma dedicatória religiosa a Nábia; uma inscrição funerária de um indígena, Pintamus; e, por fim, um texto que se refere à família de Celicus Fronto. Este último documento é particularmente interessante: o neto de Celicus Fronto, Titus Caelicus, e os seus dois bisnetos, Marcus e Lucius, assinalam numa inscrição que fizeram obras de conservação e renovação, “renovarunt”, as quais não podem ter respeitado senão a este monumento; há, portanto, uma ligação particular e familiar a este lugar.

O monumento não ostenta uma data, mas a boa qualidade da gravação permite situá-lo no século I, no contexto subsequente à criação de Braga. Celicus Fronto provinha de uma cidade de fora da Galiza e pertencia ao povo dos Ambimogidi; Arcobriga atesta-se na Lusitânia e na Celtibéria. A onomástica, bem como a origo, remetem-nos para um ambiente céltico exterior ao Noroeste peninsular. É possível ser um pouco mais preciso, na medida em que uma parte do teónimo com o radical Tong- corresponde a uma estrutura nominal frequente na Lusitânia; além disso, menciona-se uma Arcobriga numa inscrição de Coria (Cáceres). A família de Celicus Fronto deveria ter-se instalado em Braga no decorrer do século I. O monumento que um dos seus membros construiu consagrou a sua integração na cidade galaica.

O nome da divindade e o conteúdo do culto que lhe foi tributado são mais difíceis de explicar. A primeira questão que se pode colocar é a da própria estrutura do nome do deus. Trata-se apenas de uma divindade compósita, ou de uma dedicatória a duas divindades: Tongo, com dativo céltico em –oe, e uma outra divindade cujo elemento teonímico essencial é Nabia, deidade bem conhecida no Noroeste da Península e que se associa aos culto das águas? Após ter estudado os dois nomes, Leite de Vasconcelos (1905, p. 256) propunha interpretar este deus como “o deus da fonte pelo qual se jura”.

Será que alguns elementos adicionais se poderiam retirar da decoração patente no frontão do nicho? Tínhamos proposto ver na pomba uma alusão à ideia de imortalidade, reforçada pela presença do símbolo funerário do maço, comparável ao culto gaulês de Sucellus (Tranoy, 1981. p. 283-285). Devemos no entanto admitir que a hipótese é frágil. Mas a escolha do local, associada a uma nascente, é um elemento determinante para a sacralização desta rocha. A proximidade de necrópoles evidencia um contexto funerário que é também necessário ter em conta.

Porém, há que manter prudência quanto à interpretação de um culto sobre o qual não dispomos de informações mais precisas. De qualquer modo, constitui testemunho da força dos cultos indígenas uma cidade criada de novo por Roma e no seio de um família bem romanizada, uma vez que a sua onomástica – com a evolução do nome Celicus para Caelicus –, bem como a presença de tria nomina, atestam a integração deste grupo familiar no mundo romano.»*

Na verdade, ainda não há uma interpretação consensual para este monumento, que mesmo sendo dedicado a divindades indígenas, apresenta um estilo clássico.

«Apesar dos múltiplos estudos realizados, ainda se desconhece o contexto da descoberta da Fonte do Ídolo. De facto, malgrado a sua antiguidade, este monumento não é mencionado no mapa de Georg Braun (1594) que indica diversos pontos da antiga cidade romana. Também não é citado na conhecida Historia eclesiástica dos Arcebispos de Braga (1634) do arcebispo Dom Rodrigo da Cunha. A primeira referência que possuímos sobre o monumento data de 1728. Efectivamente nas Memórias para a história eclesiástica do arcebispado de Braga, o seu autor Jerónimo Contador de Argote faz a descrição detalhada do mesmo, e inclui um desenho da Fonte do Ídolo realizado pelo bispo de Urianópolis, Alves de Figueiredo.»**

* Tranoy, Alain, Fonte do Ídolo in Ribeiro, José Cardim (coord.), Religiões da Lusitânia, Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002.

** Fonte: Alves, Alexandrina Amorim, Fonte do Ídolo

quinta-feira, 20 de maio de 2010

"um santuário dedicado a qualquer divindade que o tempo levou"

Um interessante artigo de 1905, publicado n' O Archeologo Português, que nos fala de um templo já desaparecido, em Trás-os-Montes, e que o autor comparou ao santuário de Panoias.

Link para artigo completo.

Santuário de Panóias

O Satuário rupestre de Panóias localiza-se numa zona montanhosa, junto à cidade de Vila Real, em Trás-os-Montes. O culto de Panóias a Serápis foi introduzido no final do século II ou começo do século III por Calpúrnio Rufino, funcionário do governo imperial. Geza Alföldy diz-nos que este culto foi criado «provavelmente num antigo recinto de um culto indígena».

Acerca deste monumento foram feitos vários estudos, sendo o texto que se segue retirado do estudo de Géza Alföldy, na década de 90, e parcialmente publicado no livro Religiões da Lusitânia, edição de 2002, do Museu Nacional de Arqueologia.

«A area sacra estende-se ao longo da inclinação meridional de uma colina. Os seus monumentos mais importantes são três grandes penedos, com cavidades abertas na sua superfície: o primeiro está situado muito perto da entrada do recinto; o segundo, mais acima; o terceiro, finalmente, coroa o topo da colina. As epígrafes conhecidas concentram-se na primeira rocha e nas suas imediações. Originalmente existiam mais inscrições. De facto, ainda hoje se vêem alguns campos epigráficos ou restos deles na segunda e terceira rocha; porém, nada nos ficou desses textos. O santuário era ainda composto por outros penedos com cavidades de forma diversa, cuja maioria conhecemos apenas por desenhos antigos de Aguiar e de Argote. As inscrições e as estruturas cujos vestígios se vêem nas rochas, formam um conjunto e explicam-se por mútua relação.»

"Aos deuses e deusas deste recinto sagrado. As vítimas, que se sacrificam, são mortas neste lugar. As víceras queimam-se nas cavidades quadradas, em frente. O sangue verte-se, aqui ao lado, sobre as cavidades pequenas. Estabeleceu (tudo isto) Gaius Calpurnius Rufinus, membro da ordem senatorial."

"G. Calpurnuis Rufinus consagrou dentro do templo (templo entendido como recinto sagrado), uma aedes (uma aedes, um «templo» no sentido de edifício), dedicado aos Deuses dos Infernos."

"Aos deuses e deusas e também a todas as divindades dos Lapiteae, Gaius Calpurnius Rufinus, membro da ordem senatorial, consagrou para sempre, juntamente com este recinto sagrado, uma cavidade, na qual se queimam as vítimas, segundo o rito."

"Aos deuses, G. C. Calpurnius Rufinus, claríssimo, com este (templo) oferece também uma cavidade para se proceder à mistura."
"Ao Altíssimo Serápis, com o Destino e os Mistérios, G. C. Calpurnius Rufinus, claríssimo."

Esta é a última inscrição, que indica o final do rito. «O Senador dedicou uma cavidade na qual, segundo o rito, se misturava um líquido. A dita cavidade - sem vestígios de fogo, em contraste com as anteriores - localizava-se directamente por detrás da epígrafe. Neste sítio, o mystes evidentemente purificava-se do sangue, da gordura e do negro-de-fumo com que se sujara.»

«Trata-se de um ritual de iniciação que apresenta uma ordem e um itinerário muito claro: a matança das vítimas; o sacrifício de sangue nas cavidades pequenas para as divindades dos infernos; a incineração das vísceras como oferendas aos deuses; o consumo da carne da vítima como acto principal da iniciação, combinado com a revelação do nome do senhor supremo dos infernos, o Altíssimo Serápis; e, por fim, a purificação. Tudo isto corresponde aos rituais praticados em cultos similares do mundo clássico.
Todavia, tratava-se apenas do início de um ritual. As actividades prosseguiam seguramente na aedes, em cujo pavimento se observavam cavidades quadradas. Pode supor-se que noutros pontos do recinto a iniciação se repetia, cada vez num grau mais elevado - como, por exemplo, nos mistérios de Mitra. Sobre o penedo do meio da area sacra, ergueu-se outra aedes, também com cavidades no seu interior; infelizmente, as respectivas inscrições foram completamente destruídas.
No cimo da grande rocha superior existiu também uma aedes. Na parte exterior dos seus alicerces encontram-se duas cavidades e, no seu interior, outras duas; uma terceira cavidade, iniciada no interior, conduzia por debaixo da parede setentrional do edíficio à margem meridional do rochedo, onde se abre um panorama maravilhoso. Estas cavidades são maiores que todas as outras; correspondem ao tamanho de uma sepultura. Obviamente aqui teve lugar o acto principal das iniciações, que se nos torna evidente, por exemplo, graças à novela O Burro de Ouro de Apuleio, do séc. II, bem conhecida: a saber, a morte ritual do mystes, o seu sepultamento e, por fim, a sua ressurreição, a fim de alcançar uma nova visão do mundo e de lhe conhecer a grandeza e formusura.»

«O caracter das divindades de Panóias corresponde à doutrina dos mistérios que nos transmite Apuleio: o poder divino apresenta-se sob diversos nomes, porém os adeptos sabem o seu verdadeiro nome. Reconhecem-no no decurso dos diferentes actos da iniciação, passo a passo. Isto observa-se, aliás, através dos próprios textos identificados. A primeira inscrição fala, de uma maneira geral, dos deuses e deusas deste recinto sagrado. A segunda explica que se trata das divindades dos infernos, cujo culto foi aqui introduzido por Gaius Calpurnius Rufinus. Através da terceira fica-se a saber que no recinto sagrado se honram também os numina dos Lapiteae, como divindades do lugar. A quarta, no ponto mais importante da iniciação mistérica, revela o nome do deus supremo: Hypsistos Serapis. Na quinta, por fim, o nome das divindades de Panóias aparece designado através da palavra Dii: neste ponto terminal do seu itinerário, o mystes já não necessitava de mais explicações sobre as divindades da area sacra.»